Por Manuela D’Ávila
Texto original Revista AzMina
“Quem de nós, que é vítima, gostaria que a filha, que a irmã, que uma amiga, ocupasse esse lugar?”
Tenho 40 anos. Fui eleita vereadora aos 23, a mais jovem da história de Porto Alegre. Eu era de um partido pequeno, de um estado conservador. Nessa época, a comunicação digital praticamente não existia. Fui a única candidata a usar as redes sociais naquelas eleições de 2004 (para dialogar com eleitores e, posteriormente, no mandato, como forma de prestar contas), quando meus adversários sequer olhavam para isso.
Recordo disso porque a violência política de gênero, algo que sempre enfrentei em minha trajetória, tem bastante a ver com a maneira deturpada como – em geral- os grupos de extrema direita usam o avanço tecnológico (ou os deixam usar) para promover o ódio e a violência nas redes sociais. Um processo que contribui sendo combustível para a própria ascensão desses grupos.
“Faço política para discutir e enfrentar opiniões diferentes da minha, para dialogar, para construir”.
Apesar de eu ter me referido a isso como “violência política de gênero”, ainda me incomoda o fato de continuarmos encarando as violências que sofremos como algo que faz parte da política, quando na verdade isso é o oposto do que é política. Eu não faço política para sofrer violência. Faço política para discutir e enfrentar opiniões diferentes da minha, para dialogar, para construir.
Os inúmeros ataques e ameaças que sofro através das redes sociais nunca me fizeram pensar em sair delas. Não impediria, por exemplo, que eu fosse agredida no supermercado porque inventaram alguma coisa a meu respeito. Não impediria que a minha filha fosse fotografada na escola para alimentar mentiras e ameaças. Eu preciso saber que a minha filha está sendo ameaçada. Eu não tenho como viver achando que isso não existe, sendo que existe.
A Anielle Franco tem uma pergunta já clássica, que é: Quem vai cuidar das mulheres eleitas?”. E eu ousei, talvez por ter sido uma mulher eleita, colocar uma complementação nesse raciocínio dela: Nós queremos mais mulheres eleitas para isso? Quem de nós, que é vítima, gostaria que a filha, que a irmã, que uma amiga, ocupasse esse lugar? Eu não consigo responder que sim. Nós não podemos exigir isso. Eu não quero mais mulheres nessa política. Eu quero mais mulheres em uma outra política, onde elas não estejam submetidas a essa tortura da violência política de gênero.
Precisamos, enquanto sociedade, estabelecer um pacto profundo de cuidado com as mulheres que estão na vida pública e esse cuidado começa, em primeiro lugar, por respeitá-las e respeitar as suas escolhas, inclusive as de sobre como lidar com a violência que sofrem. Há quem queira denunciar, quem queira judicializar a questão, quem não se sinta em condições de enfrentar seu agressor em um tribunal e reviver tudo novamente. E todas as decisões são legítimas.
Também precisamos evidenciar os mecanismos que operam a violência contra as mulheres nas plataformas digitais, empresas cuja natureza do negócio é movida pelo ódio e, dentre esses ódios, o ódio às mulheres. A escalada da misoginia na política acontece concomitante à escalada da extrema direita. Há uma relação potente e bastante lucrativa entre as duas coisas. E isso não é algo exclusivo do Brasil. Está espalhado em todo mundo, especialmente na América Latina (que a gente ainda acompanha muito pouco, inclusive).
Mas, se de um lado, temos esse cenário desolador, do outro vemos mulheres de diferentes gerações e territórios que hoje têm coragem de falar sobre essas questões porque estão amparadas no próprio movimento feminista, na coletividade de mulheres.
“Vivemos em uma sociedade que usa a nós, mulheres públicas, como o primeiro soldado da guerra. Por isso, nunca achei que a violência contra mim fosse só para me tirar da cena pública”.
Nas minhas candidaturas anteriores a 2018, vivi todo o processo de violência política muito sozinha, com um baixíssimo acolhimento coletivo. Isso mudou drasticamente (para melhor!) nas duas últimas eleições. Ainda assim, mesmo que a acolhida das mulheres hoje permita que falemos sobre a condição de ser mulher, há uma espécie de solidão coletiva nisso, porque esse continua sendo um assunto nosso. Não é um assunto dos homens, nem mesmo dos homens que são nossos parceiros na luta pela emancipação do nosso país e do nosso povo. O que significa dizer que este não é um assunto com o qual qualquer corpo, que não seja o corpo das próprias mulheres, se envolva. Saber disso, dar conta disso na própria pele, é bem doído.
Vivemos em uma sociedade que usa a nós, mulheres públicas, como o primeiro soldado da guerra. Por isso, nunca achei que a violência contra mim fosse só para me tirar da cena pública. Ela sempre foi utilizada para regular o mercado, para dizer: “Se ela que é casada há dez anos com um homem, tem uma família típica de comercial de margarina, e ainda assim tem sua vida íntima e privada devassada, imagina vocês [ [mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres pobres]?”, “Olha, se ela, que vocês acham tão forte, passa por isso, imagina vocês?”. É por isso que meu livro se chama “Sempre foi sobre nós”.
Nenhum dos nossos abusadores e violadores foi tirado do parlamento, foi punido. O Arthur do Val foi cassado por assediar mulheres abstratas, as mulheres ucranianas. Nenhuma tem cara, nenhuma tem identidade. Fernando Cunha apalpou os seios da Isa Penna e não foi cassado, porque a Isa Penna existe, porque ela é bissexual, porque ela usa saia curta. Então isso é a prova mais categórica de que não há punição contra os nossos agressores.
“As mulheres que são vítimas de violência na política continuam sendo isoladas e responsabilizadas pela violência que sofrem”.
Quando a gente existe na vida pública, quando a gente tem cara, quando a gente tem corpo, a culpa é nossa. É isso que eles querem dizer. E dizem.
Essa semana assisti à série Intimidade, da Netflix, a qual indico fortemente. A série trata sobre vingança pornográfica – pelo menos é isso que falam dela. Acredito que a gente poderia substituir a vingança pornográfica por qualquer violência que as mulheres sofrem. A protagonista é uma candidata a prefeita, e assim como outras mulheres da trama, lida com a absoluta solidão ao enfrentar essas violências. Sabe cachorro quando tem sarna e ninguém quer por perto? Pois é, eu vivi isso.
As mulheres que são vítimas de violência na política continuam sendo isoladas e responsabilizadas pela violência que sofrem. “Se ela fosse um pouquinho mais cuidadosa, isso não teria acontecido”, a gente costuma ouvir. Lembro do verso de Cartola: “Quando notares, estás à beira do abismo/Abismo que cavaste com teus pés”. Mas o grande abismo cavado por nós, mulheres, é um só: a condição de gênero.
Sobre a Autora: Manuela D’Ávila: jornalista e política brasileira. Foi vereadora, deputada estadual e federal, além de se candidatar a vice-presidente da República nas eleições de 2018. Autora dos livros ‘Por que lutamos?’ e ‘Revolução Laura: reflexões sobre maternidade & resistência”
Sobre a Revista AzMina: jornalismo feminista com informação e dados, discutindo temas considerados tabus e reportagens investigativas. O trabalho da plataforma é independente e gratuito, por isso necessita de apoio financeiro.