Se você tem uma candidatura nas Eleições Municipais, seja para o cargo de prefeita ou vereadora, você terá um papel importante na interlocução com a população da sua cidade sobre assuntos relacionados à saúde sexual e reprodutiva, dentre eles o aborto. Afinal, o sistema de saúde brasileiro é estruturado em torno dos princípios de cobertura universal e descentralização e, por isso, os municípios têm um papel central, inclusive no atendimento das demandas no campo da sexualidade e reprodução.
Ao debater as competências dos municípios na área da saúde, há muitas oportunidades para se falar do aborto de uma forma compassiva, digna, justa e sem estigmas.
Mas é preciso avaliar as oportunidades e os riscos de quando e como fazê-lo. Vamos lá!
Aproveitando oportunidades para falar de aborto
As melhores oportunidades para falar de aborto estão conectadas às competências dos municípios na área da saúde. Ou seja, para evitar tratar do aborto como um tema isolado, que pode ser facilmente mobilizado por opositores para desqualificar ou deslegitimar sua candidatura, é importante que você o qualifique com um cuidado essencial em saúde, dentre vários outros que devem ser assegurados à população em idade reprodutiva, e que deve ser assegurado pelo SUS nos casos previstos em lei no Brasil (em caso de estupro, risco à vida da pessoa gestante e anencefalia fetal).
Além disso, o aborto é um grave problema de saúde pública quando é realizado de forma insegura, colocando em risco a vida e a saúde de pessoas gestantes.
Vejamos então como falar de aborto legal e seguro, e do problema do aborto inseguro, ao tratar de algumas das responsabilidades dos municípios na área da saúde.
- Os municípios são responsáveis por fornecer serviços de atenção primária à saúde e por gerenciar e operar várias unidades de saúde, incluindo clínicas, postos de saúde e unidades de emergência.
A atenção primária à saúde (APS) é a porta de entrada para o SUS. Ela foca na prevenção, tratamento e gestão de condições de saúde comuns, oferecendo acesso contínuo e integrado às necessidades cotidianas de saúde da população.
Podemos falar de aborto ao discutir a APS, ressaltando o seu papel na prevenção e redução das mortes maternas relacionadas ao aborto inseguro por meio de ações como
- promoção de ações de educação sexual e planejamento reprodutivo (distribuição de contraceptivos, entre outros) para evitar a gravidez indesejada;
- oferecimento de informação em saúde para que o aborto não evitável seja realizado de forma segura;
- prestação de atendimento de emergência, tratamento das complicações do aborto e fornecimento de contracepção no atendimento pós-aborto para prevenir sua repetição (Giugliani et al, 2019).
Em síntese, ao falar sobre suas propostas para a APS na sua cidade, você pode incluir essas ações que tratam diretamente do aborto, mas sem separá-lo das outras ações em saúde.
Além disso, os municípios podem (e devem) estruturar serviços de aborto previsto em lei. De acordo com a Portaria 485/2014 do Ministério da Saúde, o Serviço de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei pode ser organizado em hospitais gerais e maternidades, prontos-socorros, Unidades de Pronto-Atendimento (UPA) e no conjunto de serviços de urgência não hospitalares (Artigo 4, § 1º).
Diversos estudos mostram que uma das principais barreiras de acesso ao aborto previsto em lei é justamente a falta de serviços no vasto território brasileiro (Madeiro & Diniz 2016).
Os que existem concentram-se nas capitais e grandes cidades, especialmente no Sul e Sudeste. Desse modo, você falar da importância de se estruturar um serviço desse tipo na sua cidade e assim garantir que meninas, mulheres e outras pessoas vítimas de violência sexual tenham condições de interromper a gravidez resultante dessa violação caso assim o desejem.
- Os municípios são responsáveis por implementar programas de saúde pública adaptados às condições locais, como campanhas, programas de prevenção e iniciativas de educação em saúde, além da gestão de emergências de saúde locais e surtos.
Uma outra responsabilidade dos municípios na área da saúde é a realização de campanhas, programas de prevenção e iniciativas de educação em saúde.
Ao tratar das ações desse tipo que você promover na sua cidade, você pode incluir programas de educação e sensibilização sobre o aborto legal que visam informar profissionais de saúde e a população em geral sobre os direitos e os procedimentos legais. Essa medida ajuda a garantir que os serviços sejam prestados de maneira adequada e respeitosa, além de contribuir para a desestigmatização do aborto.
- Os municípios são responsáveis por coletar dados e monitorar indicadores de saúde.
Finalmente, os municípios têm um importante papel na coleta de dados que ajudam a subsidiar a produção de novas políticas públicas em áreas negligenciadas. E ainda, eles devem monitorar indicadores de saúde.
Nesse campo, você pode ressaltar o papel dos municípios na coleta de dados sobre abortos inseguros, que evidenciem se tratar de um problema de saúde pública grave e que leva à reflexão sobre a necessidade da descriminilização do aborto.
E, ainda, sobre o número de gravidezes infanto-juvenis resultantes de estupro de vulnerável, e que acabam não sendo interrompidas por inexistência do serviço, falta de informação das vítimas e seus responsáveis legais, negligência ou estigma.
Ao falar da importância de coleta de dados como esses, você contribui para alterar a visão de que o aborto é errado ou ruim, enquandrando-o como ele deve ser tratado: uma questão de saúde pública e de justiça reprodutiva!
Avaliando os riscos em falar de aborto
Falamos das oportunidades que você terá de falar de aborto durante sua campanha nas eleições municipais. Agora é hora de falarmos dos riscos que podem existir.
Antes de mais nada, é importante esclarecer que, enquadrado da forma como apresentado acima – como uma questão de saúde pública – não há qualquer risco do ponto de vista jurídico de se falar do aborto. Por isso, os riscos que você enfrentará são políticos e estão associados ao fato de que o aborto segue sendo um tema estigmatizado no Brasil, apesar dos muitos avanços comunicacionais que já conquistamos.
Por isso, antes de tocar nesse assunto, avalie:
- o seu público parece ser sensível e aberto a temas de saúde?
- o seu público parece ter abertura para lidar com assuntos difíceis ou tabu além da lógica “a favor ou contra”?
- o seu público parece ter opiniões próprias e independentes do que dizem autoridades religiosas?
- o seu público parece ser passível de convencimento por meio de dados e argumentos científicos?
- o seu público parece ser capaz de expressar empatia e solidariedade ainda que discorde do entendimento da outra pessoa?
Se você respondeu SIM a todas ou à maioria das questões acima, vale à pena falar de aborto quando você discutir o seu plano de mandato.
Mas se respondeu NÃO a muitas delas, vale considerar deixar essa discussão para outros espaços. Se você está comprometida com essa agenda, isso já é uma vitória enorme para o movimento por justiça reprodutiva no Brasil!
Abordar o aborto durante uma campanha eleitoral pode ser desafiador, mas também oferece uma oportunidade crucial para tratar de questões de saúde pública e justiça reprodutiva de maneira informada e responsável.
Integrar o tema ao discurso sobre a atenção primária à saúde e outras responsabilidades municipais na área da saúde não apenas ajuda a desestigmatizar o aborto, mas também a destacar a necessidade de serviços adequados, acessíveis e de qualidade.
É fundamental considerar o perfil e a receptividade do seu público ao abordar o tema, avaliando se há espaço para um diálogo baseado em evidências e empatia. Mesmo que a discussão possa ser complexa e sujeita a riscos políticos, sua inclusão nas propostas de mandato pode representar um avanço significativo na luta por melhores condições de saúde e direitos para todas as pessoas.
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Esta guia foi elaborada por Mariana Prandini Assis, advogada popular, co-fundadora do Coletivo, e professora da Universidade Federal de Goiás.
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O Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular é uma organização da sociedade civil que, desde 2014, atua com assessoria jurídica popular feminista e anti-racista em prol das lutas por justiça social e em parceria com grupos, movimentos sociais, comunidades tradicionais e demais coletividades que enfrentam processos violentos de exclusão e subalternização política, econômica e social, no campo e na cidade.
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Referências