Im.pulsa

Setembro 26, 2022. Por Im.pulsa

Movimentos sociais mudaram a minha vida e mudarão a sua também

Este contenido forma parte del curso Elas Votam: uma conversa política entre mulheres.

Por Flávia Ribeiro

Às 18h do dia 25 de julho de 2022, pego o microfone do carro de som, cumprimento as pessoas presentes e digo que estamos começando mais uma edição da Marcha das Mulheres Negras, em Belém. A vida deu uma volta enorme, até que eu chegasse a esse momento. Da criança e jovem tímida, que tinha vergonha até de sorrir, eu me transformei na mulher que está na organização de eventos e que é reconhecida por sua atuação. Mas não cheguei até aqui sozinha.

Tudo começou em 2012, quando eu estava grávida, em uma relação estável, com emprego de carteira assinada e cargo comissionado. Não esperava muito da vida, só queria ter minha filha e seguir. Mas a briga por um parto normal me jogou em um mundo que eu mal sabia existir: o dos movimentos sociais. Precisei estudar sobre as intervenções desnecessárias que são realizadas, rotineiramente, durante o parto e sobre a autonomia materna. E, sim, eu precisei brigar por um parto.

“Em um ano de eleições, é bom falarmos de movimentos sociais, porque as ações iniciadas por esses grupos repercutem na nossa vida e, muitas vezes, não nos damos conta.”

A insatisfação e a inquietude com essa situação foram me levando para outros lugares. De uma mãe descontente com o sistema de saúde, fui puxada para o feminismo, para o feminismo negro e fui seguindo. Foi como se camadas fossem se desdobrando à minha frente e eu só fosse sendo puxada.

Para além dos estereótipos que são tão difundidos, das imagens pré-moldadas propagadas exaustivamente, os movimentos sociais são compostos por pessoas como eu e como você, que está lendo este texto. A gente não concorda com determinada situação de injustiça e começa a falar disso. Nossas vozes ecoam e percebemos a força que temos.

Em um ano de eleições, é bom falarmos de movimentos sociais, porque as ações iniciadas por esses grupos repercutem na nossa vida e, muitas vezes, não nos damos conta. Muitos direitos que temos hoje começaram com a mobilização de pessoas insatisfeitas e inquietas. Vou destacar aqui as cotas raciais, em universidades públicas: um direito para pessoas negras, mas que ainda é muito debatido e até rechaçado…

Quando eu fiz a graduação em Comunicação Social, não passei pelas cotas. E precisei. Passei anos tentando e sendo reprovada no vestibular. Sempre fui estudiosa, mas não passava. Eu precisava das cotas, mas elas não existiam.

Depois de me formar, eu só pensava em trabalhar, porque precisava ajudar minha família financeiramente. Fui a primeira da minha casa a conseguir o nível superior. Mas não fui a única, mais tarde meus irmãos também conseguiram.

A decisão pelo mestrado só veio depois do meu envolvimento com os movimentos sociais. Eu já não gostava da profissão que escolhi. Não queria mais ser comunicadora. Mas fiz parte do Comitê Impulsor do Pará, na Marcha das Mulheres Negras, que atuou em função da marcha nacional, realizada em 2015, em Brasília.

Como Nilma Bentes¹ falou, o processo de preparação poderia ser tão ou mais importante que a própria marcha. Foi nesse período que vi o quanto a comunicação poderia ser importante, até mesmo para firmar cidadania e identidades. Além de invisibilizadas, as identidades negras nos são negadas na Amazônia. E muitas mulheres negras se reconheceram como negras, após ouvirem outras mulheres em eventos preparatórios para a marcha. Vocês conseguem entender o quanto isso é potente e transformador?

Passei a usar a comunicação como estratégia de luta, como cita bell hooks², e de sobrevivência. Comecei a me posicionar mais e a falar mais. E percebi que precisava de ainda mais. Eu já estava nas ruas e nos movimentos sociais, mas surgiu a necessidade de novos espaços. Percebi que precisava voltar a estudar e a contribuir para a produção de conhecimento do meu lugar de fala: uma mãe negra amazônida, com mais de 40 anos de idade e dos movimentos sociais.

Em movimento contra as opressões

“Eu sou fruto do movimento negro educador”. Foi algo que lembro de ter falado na entrevista para a seleção de mestrado. Citando o livro de Nilma Lino Gomes³, fui aprovada no Programa de Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará. E passei na reserva de vagas para pessoas negras.

Foi a política pública, sancionada em 2012, sob a forma da Lei Federal nº 12.711, que permitiu que eu voltasse a estudar. A sanção veio após anos de mobilização e luta do movimento negro, que se encarregou de “inscrever na pauta do Estado o combate ao racismo e à discriminação racial⁴”, como disse Zélia Amador de Deus. Ela defende que as políticas de ações afirmativas são ferramentas para corrigir desigualdades raciais no Brasil.

Eu destaquei as cotas raciais, mas podemos pensar em saúde, educação, segurança e etc. Políticas públicas que beneficiam milhares de brasileiros, como o Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, começaram a ser debatidas nos movimentos sociais. E vimos a importância do SUS durante a pandemia, não é?

Há uns meses, ouvi a entrevista da Sueli Carneiro no podcast do Mano Brown⁵. Ela falou de quem tem o umbigo enterrado nos movimentos sociais e isso fez muito sentido para mim. A minha vida está misturada com os movimentos sociais. Não sei onde um começa e o outro termina. Ou melhor, não termina, eu sou só continuação. De todas essas pessoas que me precederam, para que eu estivesse aqui, falando com vocês. Das que tombaram no caminho e viraram sementes. Das que estão surgindo. “É a rua que faz a diferença, a organização massiva na rua”, disse Sueli Carneiro. Eu concordo. E você?

 

Sobre a autora: Flávia Ribeiro é mãe, feminista negra afroamazônida, jornalista, consultora para Equidade de Raça e Gênero e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará. Possui quase 20 anos de experiência no mercado de Comunicação da Grande Belém. Também trabalhou para organizações e empresas de atuação nacional e internacional, como o jornal Estadão, a agência de jornalismo Alma Preta e a ONG Artigo 19. É ativista no Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), da Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira e da Rede de Ciberativistas Negras.
 

Conteúdo revisado em 12 de dezembro de 2023.

REFERÊNCIAS:

¹ BENTES, Nilma. Articulação de organizações de Mulheres Negras Brasileiras. In: Marcha das mulheres negras. São Paulo: AMNB, 2016. E-book

² hooks, bell. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

³ GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Saberes construídos na luta por emancipação. Petrópolis, RJ: vozes, 2017.

DEUS, Zélia Amador de. Os herdeiros de Ananse: movimento negro, ações afirmativas, cotas para negros na universidade. 2008. 295 f. Tese (Doutorado)

 Podcast Mano a Mano

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