Por Rita Ferreira
Vamos conferir nossa história de acesso aos cargos de poder, por meio do voto, e saber quais mecanismos foram criados para enfrentar a problemática da sub-representatividade de gênero?
As mulheres são a maioria da população brasileira e, consequentemente, do eleitorado. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), somos 52,5% das pessoas que votam, contudo, estes números não refletem a representatividade feminina na política.
Pesquisas elaboradas pelo TSE e pela ONU Mulheres demonstram a persistência de obstáculos no acesso das mulheres aos cargos de tomada de decisão, evidenciando o longo caminho que o Brasil tem a percorrer para alcançar tanto a equidade de gênero quanto a racial. No país, as mulheres negras são o maior segmento da população, 28%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, elas são as menos representadas nas instâncias de poder, uma vez que apenas 6% das vereadoras eleitas, em 2020, eram negras. Vale ressaltar que, em 53% das cidades brasileiras, nenhuma mulher negra ocupa a Câmara Municipal.
Ao longo da história, fomos afastadas da vida política e tivemos que lutar muito para conquistar o direito ao voto, que somente foi obtido na década de 1940. Votarmos e sermos votadas é uma história recente, no entanto, o que não é recente é a violência que as mulheres sofrem. E, na política, isso não é diferente.
A violência política de gênero constitui uma das principais barreiras para as mulheres usufruírem de seus direitos, sem mencionar os obstáculos adicionais, referentes à interseccionalidade, ou seja, discriminações cruzadas, experimentadas por mulheres negras, jovens, LGBTQIA+, com deficiência, indígenas, entre outras.
Mas por que as mulheres não estão na política?
Além da violência política de gênero, muitas vezes, as mulheres são silenciadas nas tomadas de decisão, encontrando dificuldades em ocupar espaços de poder e serem eleitas. Dentre as dificuldades, pode-se elencar os dirigentes de partidos que, em sua maioria, são homens brancos de meia idade, que dificultam o acesso às mulheres e às diversidades, mantendo seus pares na direção partidária. Além disso, a obrigação de cuidar dos filhos e da casa – ou seja, a divisão sexual do trabalho – também se aplica na política. A não ocupação destes espaços leva as mulheres às margens dos processos decisórios de elaboração das políticas públicas, enfraquecendo nossa democracia.
E como podemos mudar essa baixa representatividade das mulheres? Por meio de Políticas de Ação Afirmativa. São políticas públicas que visam medidas para buscar a equidade, ou seja, garantir o acesso de alguns grupos às oportunidades. Uma das maneiras de se implementar essa política são as cotas, que podem ser definidas como uma ferramenta que se manifesta como reserva de vagas, com o intuito de criar um equilíbrio entre os gêneros nas eleições.
Como funcionam as cotas de candidaturas?
O Brasil, desde a década de 1990, vem adotando medidas de ações afirmativas, em forma de regras eleitorais, visando corrigir a sub-representatividade de gênero e, assim, aumentar a quantidade de mulheres candidatas em eleições proporcionais, ou seja, em eleições para as Casas Legislativas (Câmara Municipal, Assembleia Legislativa Estadual e Câmara dos Deputados Federal). Em certa medida, tais iniciativas ocorreram devido às discussões preparatórias para a IV Conferência Mundial da Mulher e a participação do Brasil no encontro.
A primeira proposta foi a Lei nº 9.100/95. Ela previa que, no mínimo, 20% da lista dos candidatos de cada partido ou coligação deveria ser de mulheres. Já em 1997, foi debatido um conjunto de normas para regulamentar o processo eleitoral no país. No bojo dessas discussões, foi promulgada a Lei nº 9.504/97, que definiu o sistema eleitoral unificado e permanente. No entanto, foi o movimento de mulheres e as mulheres eleitas nas Casas Legislativas que conquistaram a expansão do escopo das ações afirmativas.
Na sequência, foi sancionada a Lei nº 12.034/09, que deu nova redação a política de cotas, tornando obrigatório o preenchimento de percentual mínimo de 30% para candidaturas femininas. Isso resultou em um aumento das candidaturas de mulheres, significativamente maior que nas eleições anteriores. Outro ponto que contribuiu para o aumento de candidaturas de mulheres foi a Emenda Constitucional nº 97/2017, que vetou as coligações proporcionais, a partir das eleições de 2020. Desta maneira, a cota passou a ser preenchida por cada partido e não mais por coligações, na proporção de, no mínimo, 30% e, no máximo, 70% com candidaturas de cada gênero para os pleitos proporcionais.
Como toda legislação é passível de debilidades, não foi diferente com as cotas de gênero, pois esta abria espaços para que os partidos apresentassem formalmente as candidatas mulheres, visando preencher os requisitos legais. Mas estas, de fato, não pertenciam à corrida eleitoral, se tornando “candidatas laranjas”. De outro modo, aquelas que se colocavam para a disputa eleitoral não recebiam incentivos financeiros e eram boicotadas, inviabilizando suas condições reais de eleição.
Atualmente, as mulheres recebem algum tipo de financiamento?
A problemática do financiamento destas candidaturas de mulheres levou a percepção de que, para a política de cotas ter eficácia, seria necessário investimento. Assim, nas discussões da Reforma Política de 2015, foram criados incentivos para as candidaturas femininas. A Lei nº 13.165/15 proibiu a doação de empresas para campanhas. Previu, ainda, que os partidos políticos, obrigatoriamente, empenhassem, no mínimo, 5% e, no máximo, 15% dos recursos nas campanhas de mulheres. Neste contexto, tal resolução institui a desigualdade formal entre homens e mulheres, pois os 30% de mulheres teriam acesso a, no máximo, 15% do Fundo Partidário.
Em 2017, foi criado o Fundo Eleitoral, para compensar o fim do financiamento privado de campanhas eleitorais. O montante dos recursos do fundo passa a ser dividido entre eleições majoritárias e proporcionais para candidaturas femininas, na proporção da cota: 30%. No ano seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu a inconstitucionalidade da divisão de recursos do Fundo Partidário, apontando que a divisão dos recursos deve ser equiparada ao percentual das candidaturas femininas, como se faz com o Fundo Eleitoral. Em 2019, o TSE determinou que os partidos políticos devem destinar, no mínimo, 30% do montante do Fundo de Campanha e do Fundo Eleitoral para as candidatas e, caso o partido tenha mais de 30% de candidatas, o financiamento deverá ser na mesma proporção.
Uma outra organização que acontece desde a campanha de 2020, além da cota de 30% de gênero na divisão proporcional dos fundos, é a aplicação do mesmo percentual ao tempo de propaganda eleitoral e partidária no rádio e na televisão, com a obrigatoriedade dos partidos fazerem a divulgação dessas candidaturas. Mas um aspecto que devemos levar em conta é: sempre se preserva a autonomia dos partidos, para definir os critérios desta distribuição de recursos. Vale perguntar: será que isso pode gerar alguma preferência a determinadas candidaturas? Lembra da questão da interseccionalidade?
Se avançamos tão lentamente, o que mais podemos fazer?
É inegável que as cotas contribuíram para que pudéssemos ter mais candidatas e para que mais mulheres pudessem acreditar em seu potencial para ser uma representante do povo. Contudo, as mudanças têm ocorrido de forma lenta. No geral, o percentual de mulheres eleitas não ficou muito diferente das eleições passadas e a sub-representação nos espaços de poder ainda permanece. Para as mulheres atingirem patamares significativos no número de cargos nos poderes Legislativo e Executivo, mantendo as regras atuais para a participação feminina, levaria mais de 100 anos.
Desse modo, o número de mulheres eleitas para as Casas Legislativas tem aumentado de forma bastante morosa. Isso porque, além da dificuldade para se candidatar, as mulheres também têm enfrentado desafios no que diz respeito ao apoio interno nos partidos. São constantes as disputas por recursos e verbas que são destinados às campanhas, pois eles aumentam ou diminuem, significativamente, as chances de eleição dos postulantes aos cargos políticos.
Dentro do escopo das cotas, as bancadas de mulheres das diversas Casas Legislativas debatem não apenas sobre cotas para as candidaturas, mas para as vagas no Legislativo. No entanto, para além das cotas, há a necessidade de se alterar a cultura política. É fundamental que as mulheres possam se colocar enquanto candidatas, uma vez que estas estão nos movimentos sociais, nas associações e em diversos outros espaços.
Há a necessidade de incentivar, desde criança, que as mulheres ocupem, também, o espaço público e, assim, participem da política, inclusive, da representação política, pois somos seres políticos.
E eu, como eleitora, o que posso fazer? Temos papel fundamental nessa mudança de cultura política. Vamos ouvir e dar voz às candidatas mulheres que defendem as pautas das mulheres! Vamos abalar as estruturas do patriarcado, deixando de replicar as falas de que as mulheres não sabem se colocar na política. Vamos incentivar as manas, as minas e ecoar por uma de nós nas Casas Legislativas. Por todas nós.
Sobre a autora: Rita Ferreira é psicopedagoga pela FAMERP, cientista social e pedagoga pela UNESP. É membra associada do NUPE e atuou como coordenadora de Políticas para Mulheres, em Araraquara (SP). Atualmente, é coordenadora Técnica de Apoio aos Conselhos Escolares e foi presidenta do Conselho de Combate à Discriminação e ao Racismo. Também atua como promotora Legal Popular e coordenadora da Coletiva Bennu. É, ainda, representante das PLPs de Araraquara, na Coordenação Estadual e na Rede Nacional de PLPs; articuladora do Aquilombamento das PLPs Pretas; e presidenta do Conselho dos Direitos das Mulheres de Araraquara.