O impacto na vida das mulheres, meninas e outras pessoas que gestam.
Se você é candidata ou tem um mandato político, você tem um papel importante na implementação de políticas públicas que garantem o acesso ao aborto nos casos já previstos na legislação brasileira.
Para isso, é importante que você entenda em quais hipóteses é possível acessar o procedimento e quais são os principais estigmas e barreiras que impedem o acesso de mulheres, meninas e outras pessoas que gestam a esse direito.
Quais são as principais barreiras enfrentadas para acessar o aborto?
No Brasil, o aborto é permitido por lei em três hipóteses:
- Gravidez que representa risco à vida da pessoa gestante (art. 128, I, do Código Penal);
- Gravidez de feto anencéfalo (decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54); e
- Gravidez resultante de violência sexual (art. 128, II, do Código Penal).
Em razão da criminalização e de tabus sobre o tema, estigmas sobre o aborto são profundamente enraizados na sociedade em que vivemos, o que faz com que, mesmo nos casos em que o aborto é permitido, mulheres, meninas e outras pessoas que gestam enfrentem diversas barreiras para realizar o procedimento.
Para que tenhamos uma dimensão da enorme dificuldade de acesso ao aborto previsto em lei no Brasil, vale conhecer alguns números:
De acordo com o Código Penal brasileiro, qualquer relação sexual com crianças e adolescentes com menos de 14 anos é considerada estupro presumido. Em outras palavras, não se avalia se houve ou não consentimento na relação.Considerando essa presunção, toda criança ou adolescente de até 14 anos grávida é considerada vítima de estupro e, portanto, deveria ter acesso ao aborto legal.
Mesmo assim, no Brasil, nos últimos 10 anos, a média de partos de meninas foi de 20.443,9 por ano, totalizando uma média de 204.438 crianças ou adolescentes mães anualmente, de acordo com dados do DATASUS.
Nesse mesmo período, apenas 72 gestações foram interrompidas legalmente, em média, por ano, em pessoas com menos de 14 anos.
Simplificando: por que apenas 72 crianças ou adolescentes interromperam a gestação e aproximadamente 20.000 seguiram com a gravidez? Seria essa uma escolha?
A realidade dos serviços de aborto legal no Brasil
O número pequeno de procedimentos se insere em uma conjuntura ampla de criminalização e estigmatização do aborto.
Segundo as pesquisadoras Marina Gasino Jacobs e Alexandra Crispim Boing, a baixa disponibilidade do serviço é um fator determinante. Em 2019, somente 200 municípios brasileiros tinham oferta de aborto previsto em lei, 3,6% do total de municípios do país. Essa oferta se deu majoritariamente em municípios da Região Sudeste (40,5%), com mais de 100 mil habitantes (59,5%) e de IDH-M alto ou muito alto (77,5%).
Uma a cada sete pessoas que fizeram o procedimento de aborto legal entre 2010 e 2019 precisou viajar para acessá-lo.
Em um país de dimensões continentais, a necessidade de viajar para realizar um aborto previsto em lei diminui o acesso ao procedimento seguro, tornando-o inacessível especialmente a grupos já vulnerabilizados.
Além do baixo número de serviços, um estudo realizado pela pesquisadora Debora Diniz e pelo pesquisador Alberto Madeiro, com financiamento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, aponta para a existência de barreiras morais e religiosas, o uso indiscriminado da objeção de consciência* por profissionais da saúde, a descrença na narrativa de mulheres e meninas, a falta de informação sobre a legalidade e disponibilidade do serviço no Sistema Único de Saúde e a exigência desnecessária de apresentação de boletim de ocorrência, laudo pericial ou alvará judicial para realização do procedimento .
*A objeção de consciência é a alegação de uma obrigação ou proibição, fundada na convicção religiosa, política, ética ou moral do indivíduo, para que este não cumpra um dever imposto por lei. |
Mais recentemente, amplas discussões têm sido realizadas a respeito da existência de um limite gestacional para realização do procedimento, ainda que não exista essa limitação no Código Penal.
De acordo com as orientações técnicas mais recentes do Ministério da Saúde, constantes do Ofício Nº 2361/2023/DATDOF/CGAEST/GM/MS protocolado em ação do Supremo Tribunal que discute o acesso ao aborto legal no Brasil (ADPF 989), “a legislação brasileira não estabelece um limite de tempo gestacional para o aborto legal”. Além disso, “a legislação visa garantir o acesso das mulheres a cuidados médicos seguros e legais, independentemente do estágio da gravidez, desde que cumpridos os requisitos legais específicos para cada situação”.
A imposição de limite de idade gestacional (tempo de gravidez) constitui uma barreira organizacional contra as vítimas de violência sexual que buscam os serviços de saúde com gestações mais avançadas, que resulta em grave violação de direitos humanos, passível de ser caracterizada como tratamento desumano e degradante pelo Estado.
É importante saber!No ano de 2023, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM nº 2.378/2024 que proibia médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro, impedindo a realização da interrupção da gestação a partir dessa idade gestacional. Por contrariar a Constituição Federal, essa Resolução foi suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, ainda pendente de apreciação do plenário.
Tentativas de imposição de barreiras de acesso com a aprovação de novas leis
Para além da existência de barreiras ao acesso ao aborto legal,também é notável o aumento de projetos de lei (PLs) que buscam limitar e obstaculizar o acesso ao aborto, mesmo nas hipóteses legais.
De acordo com levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assesoria (CFEMEA), tramitam no Congresso Nacional 98 propostas legislativas que querem dificultar ou proibir o direito no Brasil ().
Os cenários estadual e municipal não são diferentes. Sob o pretexto de “conscientizar sobre os riscos do aborto”, são, ao menos, sete propostas existentes em diferentes estados brasileiros, sendo que três já foram aprovadas. Em Alagoas, por exemplo, a Lei 7.492, que obrigava profissionais da saúde a mostrar “riscos e consequências” da decisão pelo aborto legal, foi aprovada em dezembro de 2023, sendo suspensa apenas por decisão judicial.
Já a Lei Estadual 22.537/2024 instituiu a “Campanha de conscientização contra o aborto para as mulheres no Estado de Goiás”. Uma das atividades da campanha é a garantia de que o Estado forneça à gestante o exame de ultrassom para escutar os batimentos cardíacos do feto ), situação equivalente à tortura psicológica.
Outro grande exemplo de tentativa de retrocesso, foi a aprovação do regime de urgêcia do PL 1904/ 2024, que pretende criminalizar quem busca o aborto a partir da 22ª semana de gestação, em casos de estupro. A mobilização nas ruas, juntamente com a atuação de parlamentares, conseguiu impedir que a votação de mérito fosse realizada até o momento.
Garantir a saúde e a vida de mulheres, meninas e outras pessoas que podem gestar é dever dos Poderes Executivo e Legislativo
Vereadoras detêm a competência para:
- editar leis que ampliem o acesso ao aborto legal,
- (votar contra projetos de lei que dificultem ainda mais o exercício desse direito e
- fiscalizar a execução das políticas públicas, incluindo as que se referem ao campo da saúde.
Prefeitas, por outro lado, devem executar o que está previsto em lei, sendo responsáveis por:
- ampliar o número de serviços de aborto legal
- garantir o correto funcionamento dos serviços já existentes.
Se eleita, você pode fazer a diferença!
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Esta guia foi elaborada por Letícia Vella, advogada, diretora de sustentabilidade e coordenadora de advocacy do Coletivo; e Júlia Piazza, advogada do Coletivo.
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O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde é uma organização da sociedade civil que, desde 1981, desenvolve um trabalho com especial foco na atenção primária à saúde das mulheres e outras pessoas com útero, a partir de uma perspectiva feminista, interseccional e humanizada. Sua principal causa é a promoção da justiça reprodutiva.