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Corpos que pautam: a relação entre representatividade e pautas legislativas

* Texto escrito por Hannah Maruci Aflalo, doutoranda e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, pesquisadora e cofundadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política (GEPÔ / DCP / USP), Juliana Marques, estatística, trabalha no Data_labe, laboratório de dados e narrativas do Complexo da Maré, e permeia o uso da Estatística nos 3 pilares de atuação da organização, produção de conteúdo, formação e geração cidadã de dados, e por Evorah Cardoso, professora e ativista, codiretora do #MeRepresenta, integrante do # VoteLGBT e da Rede Feminista de Juristas (deFEMde).

Clodovil nunca avançou a pauta LGBT no Congresso. Douglas Garcia se enunciado gay como autodefesa após discurso transfóbico na ALESP, no qual disse que tiraria a tapa pessoas trans de banheiro e chamaria a polícia. Sérgio Camargo, presidente da fundação Palmares, considera o movimento negro uma “escória maldita”. Joice Hasselmann não se entende como feminista, embora critique misóginos que sofre nas suas redes sociais. Estes são alguns dos exemplos usados ​​para se minimizar a importância da representatividade dos corpos na política. Do outro lado, mulheres, negros, LGBTQIA +, indígenas, progressivamente reivindicando suas presenças e perspectivas nos espaços legislativos como as condições para a defesa de seus direitos. Mas, afinal,representatividade dos corpos é importante para o reconhecimento de direitos humanos? Quem os representantes são tem impacto sobre o que eles precisam no legislativo? A gente acredita que sim e vamos te contar aqui o porquê, em teoria e na prática.

Na teoria há debates, mas faltam dados…

A representação política é uma das dimensões em que se verifica como desigualdades de gênero e raça com maior clareza e também uma das mais difíceis de ser ultrapassada, uma vez que a política institucional amplifica como desigualdades presentes na sociedade.

Quando se defende uma maior participação de grupos minorizados – mulheres negras, indígenas e pessoas LGBTQIA + – em espaços de representação política, existem dois debates importantes. O primeiro está relacionado à ideia de que não se pode garantir que esses grupos sejam os melhores defensores de seus interesses, ou seja, sua presença nesses espaços políticos não garante a representação de suas pautas. O segundo diz respeito ao questionamento de que seus interesses são parciais, nesse caso, atribuindo-se, consequentemente, maior valor às pautas ditas universais.

A existência de uma correspondência entre quem são os representantes e as pautas que esses defendem não é um consenso. Mesmo aqueles que advogam pela entrada de grupos sub representados (seja por fatores de gênero, de raça, de identidade ou orientação sexual) nas esferas de poder, não são capazes de afirmar uma ligação absoluta entre ser e fazer.

Na literatura da Ciência Política, esse debate se dá no âmbito das teorias da representação, se apoiando na maior parte das vezes, nos conceitos de representação descritiva e representação substantiva. Esses conceitos foram elaborados na década de 1960 pela teórica Hanna Pitkin e, embora muito tenha se pensado sobre o assunto após a publicação de sua obra tão disseminada, uma discussão parece sempre retornar a eles. A representação descritiva diz respeito a quem são os representantes: mulheres, homens, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais etc. Ou seja, esse tipo de representação diz respeito a tudo que expõe o representante em termos físicos, demográficos, étnicos etc., não comportando o posicionamento ou a ideologia de tais proprietários, que são vistos como pertencentes a grupos.Importa aqui quem é o representante. Já a representação substantiva refere-se ao que os elementos técnicos em termos legislativos, independentemente de quem são eles ou a que grupos pertençam. O que está em jogo é que os representantes fazem.

A pergunta que persiste é: quem o representante é interfere no que ele faz? Em outras palavras, a representação descritiva produz a representação substantiva? Ou ainda: uma mulher sempre defenderá pautas favoráveis ​​às mulheres?

Diversas teóricas apontam para a importância da presença de diversos corpos na política institucional, chegando a sugerir uma maior probabilidade de que tais corpos defendam pautas ligadas a quem são. No entanto, são escassos os dados empíricos que comprovem tal conexão.

Em uma análise internacional, Maria Aparecida Abreu, em seu texto “Mulheres e representação política”, publicado em 2015, na Revista Parlamento e Sociedade, nos apresenta que do ponto de vista histórico, a literatura de países que implementaram o sistema de cotas aponta que há correlação entre o aumento de representação das mulheres e avanços em pautas consideradas feministas, ou seja, a presença de mulheres contribuiu para que pautas feministas abordadas e seus interesses são protegidos.

A de Beatriz Rodrigues Sanchez traz também uma visão interessante sobre a representação substantiva das mulheres no Congresso Nacional. A partir da análise do processo de tramitação de alguns projetos de lei sobre temas relacionados à igualdade de gênero, uma autora aponta para uma articulação da bancada feminina em torno de pautas como o combate à violência contra as mulheres e à inclusão feminina na política. Constata também a existência de uma divisão sexual da política, que confinaria as parlamentares a temas considerados “femininos”. Ela conclui afirmando que a presença de mulheres nas instituições representativas é importante, mas não suficiente, uma vez que ela deve estar vinculada à defesa de propostas de interesse da população feminina.

… Na prática, os dados começam a chegar!

Como se comportam candidatos ou políticos eleitos no Brasil? Eles defendem mais como pautas que atravessam seus corpos ou não? Veja aqui informações inéditas sobre candidaturas e políticos eleitos de 2018 de duas iniciativas, uma plataforma de candidaturas ao legislativo #MeRepresenta e o projeto Elas no Congresso da Revista AzMina .

Nas mudanças de 2018, cerca de 900 candidatos às Assembleias Legislativas estaduais e ao Congresso Nacional (3,5% do total de candidaturas do país) cadastraram-se na plataforma #MeRepresenta respondendo a 22 perguntas de direitos humanos envolvendo questões de gênero, raça, sexualidade, grupos tradicionais, corrupção, trabalho, saúde, educação, segurança, drogas, meio ambiente e migrantes [1]. E ao cruzarmos suas respostas com os seus corpos descobrimos que esses corpos defendem pautas e que, nesse caso, uma representação descritiva e substantiva caminharam juntas: mulheres defendem mais como pautas de gênero, negres defendem mais como pautas raciais e LGBTQIA + defendem mais como pautas de sexualidade e identidade de gênero.

Foi possível observar que candidaturas de mulheres apoiam mais determinadas pautas do que as candidaturas de homens. Pautas como a legalização do aborto, o financiamento público de campanhas de mulheres negras, as cotas raciais nas universidades, a prioridade no atendimento de mulheres negras no SUS, a criminalização da LGBTfobia, a utilização por pessoas trans e travestis de banheiros adequados às suas identidades de gênero, as cotas para inscritos no Congresso, a legalização da maconha, o acolhimento de migrantes venezuelanos no Brasil, e o direito à voto de migrantes. O percentual de mulheres e homens que apoiam a pauta de Monitoramento da Lei de Feminicídio não apresenta diferença presente.

Cidadãos da raça raça, candidaturas negras são mais favoráveis ​​a cotas raciais nas universidades e prioridade no atendimento de mulheres negras no SUS em relação às candidaturas brancas. Apenas o posicionamento sobre tornar o crime o abate de animais em religiões de matriz africana, – que o Supremo Tribunal Federal, depois das mudanças, já rechaçou, por criminalizar e discriminar estas religiões – não teve diferença entre apoio de candidaturas negras e brancas.

Todas as pautas LGBTQIA + foram mais apoiadas por candidaturas que se identificaram como LGBTQIA +, ou seja, este grupo é mais favorável à criminalização do projeto LGBTfobia, contrário ao escola sem partido e favorável à possibilidade de trans e travestis usarem o banheiro que quiserem.

A Revista AzMina, por meio do projeto Elas no Poder , tem medido como cada deputada (o) e senadora (o) tem atuado em leis importantes para os direitos das mulheres no Brasil, criando um ranking entre eles e entre partidos destes políticos. E o resultado desta análise também reforça que a presença de corpos na política influencia a disputa pelo reconhecimento de direitos destes corpos. Embora as mulheres sejam apenas 15% do Congresso Nacional, elas propõem 4,5 vezes mais projetos favoráveis ​​aos direitos das mulheres do que homens. 74% dos projetos desfavoráveis ​​às mulheres no Congresso Nacional são conduzidos por homens parlamentares.

Corpos também pautam

O que estes dados de candidaturas e de eleitos nos mostram que há um projeto político de representatividade a ser conquistado no nosso horizonte que não se restringe ao efeito simbólico da presença destes corpos no poder. Temos notado o grande impacto da presença dos poucos corpos que conseguiram romper estas barreiras de acesso em seus cargos recentemente conquistados. Não apenas porque eles fazem avançar suas pautas, mas também porque à medida que avança a própria institucionalidade destes corpos com pautas, criam-se contrapesos, recursos simbólicos e políticos são redistribuídos e novos corpos com pautas passam a ter possibilidades.

Por isso, temos um desafio gigantesco para superar a subrepresentação de mulheres, pessoas negras, LGBTQIA + e indígenas em nossa política e bom sabre que avançar na representação também é avançar no reconhecimento de direitos destes grupos. Por que os partidos não destinam recursos efetivos para suas candidaturas, por que as lideranças partidárias que decidem essa distribuição de recursos ainda são majoritariamente homens e por que o espaço político é especialmente violento contra estes corpos? Será que é justamente porque esses corpos pautam que eles não estão no poder?

Por ser uma plataforma para eleitores encontrarem candidaturas que declaram suas posições sobre as pautas de direitos humanos, podemos considerar que as candidaturas inscritas no #MeRepresenta se identificam, em alguma medida, com uma posição pró-direitos humanos ou que considera que expor seu posicionamento seria benéfico para sua imagem.

Fonte: Estadão

 

 

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