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Novembro 13, 2020. Por Organizações Especialistas na Agenda Climática

Gênero e raça: como criar cidades para todo mundo

Este contenido forma parte del curso Seja eleita com propostas para o futuro da sua cidade

As cidades brasileiras são muito injustas. Torná-las mais inclusivas e distribuir melhor as oportunidades é fundamental para deixá-las mais resilientes diante crise climática.

A crise climática atinge de maneira desproporcional as mulheres, principalmente as negras, indígenas, quilombolas e outros grupos marginalizados. Elas integram os grupos mais vulneráveis às crises climáticas, e as que têm menos acesso a medidas de adaptação1.

Não é justo que o maior preço a pagar pelas mudanças climáticas seja mais alto a depender do gênero, da raça ou da classe. Até porque esses grupos vulneráveis já vinham pagando um preço mais alto que os outros.

Mulheres, principalmente negras, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+ e outros grupos sociais subrepresentados já têm muito menos acesso à cidade. Suas oportunidades de aprendizado, de renda, de oferta de serviços, de conexões, de realização, de cuidado, de bem estar nos nossos espaços urbanos são mais limitadas que a de homens, especialmente brancos.

Na origem dessa desigualdade está um desequilíbrio na divisão do trabalho.

No mundo todo, mulheres fazem dois terços do trabalho remunerado de cuidado —  em funções como enfermeira, professora, e também empregada doméstica, cozinheira —, e três quartos do trabalho não remunerado de cuidado, zelando pela casa, pela família e pela vida de crianças, de doentes, de idosos2. A economia não valoriza esse trabalho, sem o qual a vida em sociedade seria impossível. É dessa desvalorização que vem a injustiça das nossas cidades.

Corrigi-la requer um olhar novo sobre basicamente tudo.

As cidades têm que se reorganizar para distribuir de forma mais equilibrada as oportunidades, os serviços e os recursos, hoje mais concentrados nos centros, o que impõe sérios riscos à população que hoje vive nas periferias3.

O sistema de mobilidade precisa ser em rede, conectando tudo, e não radial como é hoje, conectando apenas o centro com as bordas. E o espaço público precisa ser cuidado com capricho, para ser convidativo e seguro. Hoje as mulheres sofrem com uma imobilidade urbana extrema, imposta por um território hostil: 86% das mulheres brasileiras já sofreram assédio no espaço público4.

Criar políticas para incluir essas pessoas é bom para a cidade toda.

É por isso que qualquer cidade precisa buscar constantemente dois objetivos: a inclusão socioeconômica dos grupos mais vulneráveis e uma divisão mais igualitária do trabalho de cuidado entre as pessoas, no núcleo familiar, e também entre o individual e o coletivo.

Inclusão socioeconômica

  • É urgente criar oportunidades de trabalho para mulheres. A crise agravada pela pandemia fez o desemprego disparar no Brasil, e os grupos mais afetados são mulheres e negros.  O desemprego nesses grupos ultrapassou 16% em outubro de 2020, uma taxa muito mais alta que entre homens brancos, que está em torno de 11%, de acordo com dados da Pnad Covid5. Em Salvador, um programa da prefeitura está focado em capacitar mulheres para trabalhar na construção civil, além de dedicar espaço a ações de capacitação e formação empreendedora especificamente para mulheres negras.
  • É necessário investir no empreendedorismo.  Um levantamento mostrou que 82% das pessoas negras empreendedoras não têm CNPJ no Brasil6. E são justamente esses homens e mulheres  e suas pequenas empresas que mais estão sentindo a crise nesta pandemia7. Na cidade de São Paulo, a prefeitura tem investido em uma aceleradora de negócios nas periferias, com capacitação, mentoria e investimento em empreendedores que querem alavancar seus negócios digitais. Também é necessário investir diretamente nas mulheres8, apoiando seus projetos e iniciativas como o Encontro Nacional de Mulheres Negras Empreendedoras e Empresárias, que teve sua primeira edição este ano.

Um desafio: as cidades ainda são espaços violentos para mulheres. As mulheres são vítimas recorrentes de diversos tipos de violência, seja no espaço público[efn_note]Nove em cada dez mulheres já sofreu assédio no espaço público, ver mais em ITDP, O acesso de mulheres e crianças à cidade, 2018.[/efn_note] ou no âmbito doméstico, em suas casas. As mulheres indígenas do Rio Negro têm se articulado para lutar contra a violência de gênero: não houve um dia sequer sem um caso de violência contra a mulher em São Gabriel da Cachoeira, município mais indígena do Brasil, nos últimos 10 anos. É fundamental investir em redes de proteção e acolhimento e na independência financeira de mulheres. Além disso, é preciso avançar na construção de um espaço público seguro, onde as mulheres possam circular sem medo[efn_note]Ver mais em: Jovem Pan, Oito em cada dez mulheres têm medo de andar sozinhas na rua à noite, 15/03/18. [/efn_note].  A prefeitura de Fortaleza tem atuado no combate ao assédio no transporte coletivo, com campanhas de conscientização, capacitação de funcionários e flexibilização dos pontos de ônibus à noite, para que as passageiras possam desembarcar nos locais que considerem mais seguros.

Uma ideia: leve a perspectiva feminina para posições chaves da gestão. É impossível avançar na construção de uma sociedade inclusiva sem que existam mulheres tomando decisões que são essenciais para a vida da cidade: em áreas como mobilidade, desenvolvimento urbano, saúde, empreendedorismo, cuidado do espaço público. Em 2014, Lima sediou a principal conferência climática das Nações Unidas, e lá foi instituído um programa específico para avançar na representatividade de mulheres em cargos de liderança, alinhado às diretrizes do Acordo de Paris. Mas é possível fazer mais a cada gestão: cabe a todas as pessoas eleitas construir equipes diversas, com equidade de gênero e raça.

Compartilhamento do trabalho de cuidado

  • É URGENTE dividir de maneira mais justa o trabalho do cuidado. Hoje ele recai quase todo sobre as mulheres, especialmente sobre as mais pobres. As cidades têm um papel fundamental de compartilhar parte desse trabalho, oferecendo estruturas coletivas de cuidado: creches, escolas abertas em horários generosos com ampla oferta de atividades, tanto para crianças quanto para as famílias. A Prefeitura de Fortaleza, por exemplo, dobrou o número de vagas em creches entre 2012 e 2019, criando uma rede de creches terceirizadas. Outra coisa que as cidades podem fazer é dar incentivos para que homens e mulheres dividam melhor o cuidado da família: flexibilizando horários de trabalho, facilitando o trabalho remoto, oferecendo a alternativa de licença-paternidade para casais que compartilharem o cuidado.
  • É NECESSÁRIO construir as bases de uma rede de cuidado ampla, excelente e universal. A pandemia escancarou a desigualdade do acesso ao cuidado que vivemos hoje no Brasil. Os dados mostram que a Covid-19 é mais letal nas periferias9, e a população negra é a que está mais exposta e que mais morre em decorrência do vírus. Mas essa crise não é de hoje: a população negra também é a que menos pode contar com serviços de saúde10 e é a que mais apresenta doenças associadas à saúde mental11. Esse cenário expõe as deficiências do sistema, que não valoriza adequadamente enfermeiras e outros profissionais da saúde, além de sobrecarregar, dentro das casas,  principalmente as mulheres negras. Uma forma de lidar com o problema é fazer como Porto Alegre, que tem programas voltados especificamente para a saúde da população negra. A desigualdade da educação pública também é profunda, e afeta gravemente as periferias12. Para contornar essa situação durante a pandemia, cidades como Belém começaram a transmissão de aulas pela TV, em vez de focar na internet, para garantir que todos os estudantes tivessem acesso ao conteúdo transmitido remotamente.  

UM DESAFIO: o trabalho de cuidado é muito desvalorizado. Quando o poder público não valoriza o trabalho realizado por profissionais da saúde, educação e do serviço social, dificilmente outras formas de cuidado serão valorizadas e respeitadas. Isso fica evidente na maneira como as cidades brasileiras lidam com o trabalho doméstico, um serviço essencial para a sobrevivência de boa parte da população, mas mal remunerado e muito precarizado. O Brasil tem mais de 7 milhões de mulheres trabalhando como domésticas, mais que qualquer outro país do mundo, e 80% dessa força de trabalho é negra[efn_note]Fenatrad, Confira o artigo de Luiza Batista e Liana Cirne Lins, ‘Guia para patroa feminista’, 26/05/20. [/efn_note], taxa mais alta do que em qualquer outra profissão exercida no país. Essa força de trabalho é tão importante que, durante o isolamento, na pandemia, várias cidades a consideraram uma ocupação “essencial”. Se é essencial, não poderia ser tão precário. Este relatório produzido pela ONU recomendou a adoção de medidas de proteção às trabalhadoras domésticas como subsídios e transferências de renda, protocolos de saúde e segurança, fomento à formalização do trabalho e formação digital e financeira.  

UMA IDEIA: criar uma rede de mobilidade que favoreça o trabalho de cuidado. A forma como as mulheres se deslocam pelas cidades reflete muito como se dão os circuitos do cuidado, que demandam uma série de atividades ao longo do dia para além do trabalho, como idas ao supermercado, acompanhamento de crianças nos trajetos para a escola e dos idosos em atendimentos de saúde[efn_note]Prefeitura de São Paulo, Mulheres e seus deslocamentos na cidade: uma análise da pesquisa Origem e Destino do Metrô, 06/03/20.[/efn_note]. Mas as cidades não contemplam essa especificidade. Em São Paulo, o sistema de Bilhete Único permite viagens múltiplas: é possível fazer até quatro viagens dentro de um período de três horas pagando apenas uma única passagem; também há a opção de pagar um valor fixo mensal para usar o transporte público quantas vezes forem necessárias[efn_note]Para conhecer todas as especificidades e possibilidades do Bilhete Único, acesse: https://www.sptrans.com.br/tarifas.[/efn_note].

UMA DICA: monitore a proporção de mulheres e crianças entre os ciclistas e aja para aumentá-la. O transporte ativo é bom para a saúde, melhor em termos de proteção na pandemia e mais adequado para deslocamentos constantes. No entanto, andar de bicicleta no Brasil é muito perigoso, e acaba sendo um modal que só atrai públicos menos vulneráveis – em São Paulo só 6% dos ciclistas são mulheres. Nos Estados Unidos, mulheres são 25% dos ciclistas, na Alemanha são 49%, e nos países com estrutura cicloviária realmente boa, como os da Escandinávia e a Holanda, mulheres são 55% de quem pedala[efn_note]Vá de Bike, Por que há poucas mulheres pedalando de bicicleta, 10/03/19.[/efn_note]. As cidades devem trabalhar para dar segurança às rotas ciclísticas de maneira a aumentar constantemente esse indicador.

IMAGINE O DIA em que cuidar das crianças de uma cidade será uma responsabilidade compartilhada.

Os serviços de saúde, educação e acolhimento serão distribuídos de forma equilibrada por todos os bairros, e não haverá pessoas sobrecarregadas com o trabalho de cuidado. Também não haverá pessoas desproporcionalmente afetadas pelas crises que tivermos que enfrentar, e todo mundo terá acesso aos recursos e às condições necessárias para contornar os desafios que se apresentarem. Será prioridade da cidade cuidar de todas as pessoas que a habitam, para que elas possam crescer, se desenvolver e prosperar, junto com toda a comunidade.

É como diz o ditado do povo yorubá, em África: é preciso uma aldeia para criar uma criança. É do interesse de todas as pessoas na cidade que ela se torne um lugar onde as crianças cresçam bem. Ao delegar quase que exclusivamente às mulheres esse trabalho essencial para a continuidade da vida, quase sem ajuda alguma, nossa sociedade limita injustamente a realização que as mulheres conseguem atingir em outras esferas da vida. 

 

Confira o material

 

Conteúdo revisado em 14 de maio de 2024

  1. Ver mais em: ActionAid, Mulheres, mudanças climáticas e pobreza, 16/10/19.
  2. Esse dado consta deste relatório sobre o trabalho do cuidado, produzido pela Organização Internacional do Trabalho. OIT, Care work and care jobs for the future of decent work, junho 2018
  3. Ver mais em: Nexo Jornal, Por que as periferias são mais vulneráveis ao coronavírus, 18/03/20.
  4. ITDP Brasil, O acesso de mulheres e crianças à cidade, 2018.
  5. Ver mais em: Folha de S. Paulo, Taxa de desemprego chega a 17% entre mulheres e 16% entre negros, 23/10/20.
  6. Ver mais em: Diário do Nordeste, Fundos emergenciais levam socorro a microempreendedores negros e mulheres, 14/04/20.
  7. Sebrae e FGV, O impacto da pandemia de coronavírus nos pequenos negócios, 2020. Ver mais em: UOL, Os que mais sofrem na crise, 02/07/20.
  8. Agência Brasil, Empresas lideradas por mulheres negras são mais atingidas por pandemia, 03/08/20.
  9. Ver mais em: O Globo, Covid-19 é mais letal em regiões de periferia no Brasil, 03/05/20.
  10. Anesp, População negra está mais exposta e morre mais pela Covid-19, 13/05/20.
  11. CRP-SP, Saúde mental da população negra importa, 2019.
  12. Ver mais em: Nós mulheres da periferia, Covid-19: professoras da periferia explicam por que a educação está em risco, 05/05/20.
Organizações Especialistas na Agenda Climática

Conteúdo elaborado por uma coalizão de organizações da sociedade civil e especialistas da área socioambiental e climática.